Serei eu somente mais uma laranja mecânica?

Serei eu somente mais uma laranja mecânica?
"Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias pra se pensar certo, é não estarmos demasiado certos de nossas certezas."
-Paulo Freire-

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O Caderno

        Começava mais um dia comum: uma leve brisa que entrava pela janela deixava o quarto mais frio ainda, uma vez que o sol matinal ainda preguiçoso não ostentava forças pra combater a noite fria de inverno que havia acabado há pouco tempo. Alguns cachorros de rua já reviravam sacolas de lixo à procura de restos de comida, poucos carros quebravam o silêncio que predominava na paisagem sonora das ruas. Tinha tudo pra ser um dia a mais na minha vida: acordo cedo, tomo um banho, tomo um café, coloco meus fones de ouvido e saio caminhando para o ponto de ônibus.
        Sentei-me no banco gelado do ponto de ônibus, ainda com os fones de ouvidos, Queens Of The Stone Age melhorava meu humor nesse começo de dia. De repente sinto um cutucão nas costas, me virei para olhar quem era e senti algo estranho: não era a mulher mais linda do mundo, não nesses padrões que a gente vê na TV, nem era o rosto mais simétrico que eu já tinha visto, mas mesmo assim um espasmo de felicidade me tocou, e em um orgasmo de um microssegundo meu corpo tremeu, e soltei uma risada quase como se o toque dela tivesse me feito cócegas.
        − Com licença, você poderia me dizer se o Jardim Botânico já passou?
         Carregava um caderno nos braços.
        − Ainda não, também estou esperando ele, quer se sentar?
        − Ah, sim, achei que já estava atrasada de novo.
        Se sentou do meu lado, desliguei a música, tirei o fone.
        − O que estava ouvindo?
        − Queens Of The Stone Age, conhece?
        − Não, é bom?
        − Me diga você...
        Estiquei o fone e ela colocou no ouvido. Enquanto ela ouvia, ela escrevia algo no caderno, não consegui entender o que era, também não fiquei olhando, não queria parecer um desses caras que se apaixona a primeira vista e já sai perseguindo a pessoa.
       − Eu gostei bastante, acho que vou baixar quando chegar em casa. A propósito, eu sou Liz.
       − Thomas, mas todo mundo me chama de Tom.
       − Eu gosto de Tom, me lembra música... o ônibus vem vindo.
       Pegamos o ônibus e conversamos até ela descer, ela trabalhava a uns três pontos antes do meu. Pensei nesse encontro do acaso o dia inteiro, e me decidi que iria atrasar novamente no dia seguinte.

        Acordei alguns minutos mais tarde, tomei um banho, tomei um café, pus meu fone e caminhei pro ponto de ônibus, sentei-me no mesmo banco gelado, ouvia a mesma música. Dessa vez Liz não apareceu. E foi assim no dia seguinte, e no próximo e no próximo: acordar, banho, fones, caminhada, banco gelado, Queens e nada de Liz.

       No quarto dia estava lá antes de mim, sentada num canto, fumando um cigarro escrevendo em seu caderno.
        − Hey, lembra de mim?
        − Claro, Tom né?
        − Isso! Não te vi mais por aqui...
        − Ah, estava trabalhando em outras coisas.
        − Você é escritora?
        − Não, trabalho em um banco, porque escritora?
        − Ah, é que você está sempre com este caderno, achei que tivesse alguma coisa a ver...
        − Que caderno?
        − Esse que você estava escrevendo agora.
        Notei que ela não estava mais escrevendo mas não me recordo de ter visto ela guardar o caderno.
        − Não escrevo em caderno nenhum, você deve estar me confundindo com outra garota que você conhece.
        − Não conheço muitas pessoas, só algumas do trabalho, sou meio sozinho. Não tenho muito tempo pra conhecer as pessoas, acordo cedo, tomo banho, tomo café, ponho os fones, caminho pro ponto de ônibus, trabalho, chego em casa, janto, rezo e durmo...
        Não sei porque eu falei assim, não queria falar assim, era como se outra pessoa tivesse escrito e eu lido.
        − Me parece meio chato, por isso eu não gosto de rotina, cumpro minhas obrigações mas tento sempre fazer o que eu quero, quando eu quero. Aí vem o ônibus....      
        Conversamos mais um pouco e eu me sentia cada vez mais curioso com o fato dela ter negado a existência de um caderno, estava ali! Eu via aquele caderno, porém, não toquei no assunto mais, fiquei com medo de ofender, pensei que fosse algo íntimo que ela não queria que eu soubesse que existia. Pensei nisso o dia inteiro.

        Cheguei em casa do trabalho, e como de rotina, jantei, vesti minhas roupas de dormir, que eu nem sei porque eu tinha, nem gostava delas, acho que foi presente de alguém e eu acostumei usar. Deitei-me em minha cama, e durante a oração que eu repetia todo dia antes de dormir, comecei a pensar naquele caderno e no sorriso de Liz. Adormeci antes de terminar minha rotina, nunca achei que isso fosse possível

        Sonhei que eu acordava, tomava banho, café, punha os fones de ouvidos, sentava no banco gelado, lá estava Liz e seu caderno, eu ouvia Queens Of The Stone Age. O cobrador do ônibus me pedia o dinheiro e anotava algo em seu caderno, quando desci do ônibus vi cachorros revirando sacolas de lixo cheias de cadernos. Chego ao trabalho e meu chefe me chama na sua sala:

        − Onde está o seu caderno?

        − Eu não tenho um caderno.
        − Onde está o seu caderno?
        − Que caderno é esse?
        − ONDE ESTÁ A PORRA DO SEU CADERNO???
        − Eu não tenho um caderno.
       De repente não era mais meu chefe, mas ele havia se transformado em Liz, com toda sua presença deliciosa.
       − Onde está o seu caderno?
       − Até você? que diabos é esse caderno?? eu não tenho a merda de um caderno!
       − Todos tem um caderno! Onde está o seu?
       − Já disse, eu não sei que caderno é esse!! Não tenho tempo pra ficar escrevendo qualquer merda num caderno! Tenho que acordar cedo, tomar banho, tomar café, pôr os fones, caminhar pro ponto de ônibus, trabalhar, chegar em casa, jantar, rezar e dormir...
        Mas que porra, falei isso de novo...
       − Me parece meio chato, por isso eu gosto de escrever a minha própria história.
        Acordei suado com o despertador tocando, já era cedo, o sol matinal ainda não ostentava forças pra combater o frio que fazia no quarto, mas mesmo assim eu estava nu e deitado no chão. Me levante e fui até o banheiro, olhei no espelho e naquele dia decidi não tomar banho, não fazer café, não por meus fones de ouvidos, e nem caminhar pro ponto de ônibus, não sentar naquele banco gelado, e tirar o dia pra escrever uma página diferente na minha história.
        Enquanto eu pensava nisso, vi meu reflexo escrevendo alguma coisa em seu caderno e dar um sorriso pra mim do outro lado do espelho...




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